sexta-feira, 1 de novembro de 2013

O CONSELHEIRO DO CRIME ('The Counselor') EUA/ Reino Unido/ Espanha, 2013. Direção: Ridley Scott.

Surpreende bastante que um filme dirigido por Ridley Scott e roteirizado por Cormac McCarthy tenha obtido a recepção tão fria (para não dizer indiferente) que “O Conselheiro do Crime” (2013) recebeu por parte da crítica e do público. Dirigido pelo mesmo realizador de obras insignes como “Os Duelistas” (1977), “Alien, o Oitavo Passageiro” (1979), “Blade Runner, o Caçador de Andróides” (1982) e “Thelma & Louise” (1991), e roteirizado por um dos escritores contemporâneos mais autorais em sua abordagem ao mesmo tempo poética e austera da fereza humana [vide os formidáveis romances “Meridiano de Sangue” (1985) e “Onde os Velhos Não Têm Vez” (2005)], “O Conselheiro do Crime”, paradoxalmente, tem na excelência prototípica de seu roteiro o principal problema: em mais de um momento, as interpretações e/ou a condução directiva do filme ficam aquém do modo mui peculiar com que os personagens mccarthianos externam poderosas reflexões metafísicas enquanto realizam atividades absolutamente triviais ou intensamente criminosas.

Porém, quando Ridley Scott emula a postura tão ágil quanto estilosa de seu irmão recém-falecido Tony Scott [particularmente em “Chamas da Vingança” (2004), com o qual este filme tem algumas semelhanças formais], ele obtém exímios resultados, malgrado não abolir a percepção dos defeitos ostensivos anteriormente mencionados. A cena em que o personagem-título (interpretado de maneira forçosa por Michael Fassbender) atravessa uma procissão, na qual uma mãe mexicana exige providências governamentais acerca do contexto de violência urbana que causou a morte de seu filho, é um ótimo exemplo do quanto a ótima direção fotográfica de Dariusz Wolski contribui para a constatação dos méritos scottianos, tão acertados quanto o foram no admirável filme policial “O Gângster” (2007).

 Apesar da magistral direção de fotografia, da montagem primorosa de Pietro Scalia (colaborador habitual do diretor desde a segunda metade da década de 1990) e da magnânima utilização das músicas contidas na trilha sonora, que vão da eficientíssima partitura original de Daniel Pemberton a canções interpretadas por Beirut [“Santa Fe”], Lila Downs [“Zapata se Queda”] e Paco Mendoza [“La Frekuencia”], além de diversas bandas eletrônicas, uma das maiores fragilidades de “O Conselheiro do Crime” está no modo como o quinteto central de atores tenta se adequar à complexidade estrutural dos personagens que interpretam: se, conforme já foi dito, Michael Fassbender está um tanto afobado como aquele que é chamado apenas por seu apodo advocatício e Javier Bardem decepciona num papel caricato (o do bandido Reiner), Cameron Diaz defende vigorosamente o exotismo – que, eventualmente, beira a estereotipia vilanaz – da lúbrica Malkina, a ponto de, em meio ao absorvente morticínio em que o roteiro do filme se converte do meio para o final, o espectador quase se sinta tentado a torcer por sua sobrevivência, por mais ardilosa e malévola que ela se demonstre, inclusive na cena dispensável em que finge interesse em se confessar para um padre católico (Édgar Ramírez). Brad Pitt, por sua vez, oferece uma interpretação apenas correta como o atravessador Westray e Penélope Cruz está adequadíssima ao seu papel secundário de noiva do protagonista, assassinada de forma brutal como quase todos os outros citados até agora.

 Em dado momento, o entrecho de “O Conselheiro do Crime” parece organizar uma competição interna para apresentar o personagem que morre da forma mais chocante, honra que talvez seja concedida ao motoqueiro decapitado que sabemos ser filho da presidiária vivida por Rosie Perez, uma atriz que, mesmo num papel apenas conectivo, está maravilhosa, o mesmo podendo ser aplicado ao joalheiro holandês interpretado por Bruno Ganz e ao mercenário silencioso e brutal vivificado por Sam Spruell, sem contar a divertida participação não-creditada de John Leguizamo como um traficante de drogas hostil ao protagonista.

 A menção à brevidade participativa da presidiária interpretada por Rosie Perez, que aparece em apenas duas seqüências (quando dialoga com o advogado sobre a prisão de seu filho por excesso de velocidade e o momento posterior em que ela intuitivamente sente a morte do mesmo), torna perceptível mais uma firula enredística, no sentido de que a vinculação entre o protagonista e esta personagem é precipitada e deveras capciosa, o que torna assaz artificial o fato de que, após saberem da decapitação do motoqueiro através de uma manchete de jornal, o advogado e os demais personagens descobrem que são mortalmente perseguidos por mandatários delituosos que gozam de uma existência mefistofélica, tamanha a onisciência de suas condições informativas, a onipresença de suas ordens exterminadoras e a onipotência aplicativa destas últimas.

É nesse quesito que, revertendo sagazmente uma deformidade narrativa, o filme expõe o seu elemento discursivo mais interessante: por mais concretas que sejam as atividades letais do tráfico de drogas, a sua mantença é praticamente abstrata (segundo as nuanças do capitalismo especulativo), o que se confirma no brilhante diálogo em que Westray explica ao personagem-título o quão cúmplices de assassinatos em massa são os consumidores de cocaína que, através de sua aquisição reiterada de produtos ilegalmente contrabandeados, engendram demandas produtivas que põem em ação diversos agentes desencadeadores das discrepâncias sociais mais aberrantes, o que explica – tanto no enredo do filme quanto fora dele – o luxo exacerbado dos milionários que possuem um casal de felinos selvagens no interior de suas mansões e os subempregos disputados por pessoas que não hesitam em limpar sangue humano e restaurar a lataria de caminhões atingidos por projéteis balísticos, transportar cadáveres quase decompostos em meio a contêineres de fezes ou surrupiar os pertences de homens trucidados à queima-roupa...

Ainda que Cormac McCarthy demonstre pleno conhecimento do esquematismo das tramas hollywoodianas, ao fazer com Reiner descreva casualmente ao protagonista o intricado funcionamento do ‘bolito’, mecanismo letal envolvendo um arame motorizado que rasga a artéria carótida em poucos minutos – o que será demonstrado a posteriori, quando o personagem de Brad Pitt é morto em plena luz do dia, numa rua londrina – e exagere em suas pretensões literárias quando leva Westray a afirmar que Jesus Cristo não poderia nascer no México porque seria difícil encontrar três homens sábios e uma virgem no país, ele compõe diálogos superlativos ao longo do filme, como, por exemplo, quando Malkina responde, ao ser tachada de fria por evitar sentir saudades, que “a verdade não possui temperatura”, ou quando é proferido que amigos confessadamente dispostos a morrer por outrem correspondem à constatação de que, na verdade, não se tem nenhum amigo real. O telefonema que o advogado recebe de um misterioso personagem mexicano, que, valorizando uma citação literária sobre a edificação do caminho a partir da própria andança do caminhante, o faz perceber que sua amada fora morta (o que é verificado numa seqüência posterior, quando ela é despejada de um caminhão de lixo, em meio a outros detritos) é um dos diversos momentos em que um falante estende-se demais em seu diálogo, confundindo-se com as instâncias narrativas dotadas de muita sabedoria prática e parafilosófica que abundam nos livros escritos pelo autor.

 A adequação elogiável de Ridley Scott ao seu estilo tão dialogisticamente lacônico quanto verborragicamente preciosista merece ser elogiada, configurando-se num maduro contraponto às adaptações anteriormente realizadas de suas obras, em especial o mediano “Espírito Selvagem” (2000, de Billy Bob Thornton), o arrebatador “Onde os Fracos Não Têm Vez” (2007, de Joel & Ethan Coen) e o enfadonho “A Estrada” (2009, de John Hillcoat). “O Conselheiro do Crime” é, portanto, um filme que tende a ser mais valorizado com o decorrer do tempo, visto que o seu pendor imediatamente profético parece ter assustado os seus receptores, que não assimilaram as profecias mortiferamente tautológicas despejadas através de um intricado quebra-cabeça enredístico mancomunado às convenções fílmicas do gênero policial...

 Wesley Pereira de Castro.

3 comentários:

Reinaldo disse...


Fui assistir ao filme muito empolgado. Isso é prejudicial, acredito. Sou fã de Cormac, dos diálogos: frases curtas. Gosto das personagens aparentemente normais mas que sempre deixam uma mensagem cortante. Cruel. Dura. Quando sai da sala, pensei, juntamente com o meu amigo: teria gostado mais se essa história tivesse sido contada em forma de romance. Imagino que há muita coisa ali para ser refletida, mastigada, degustada, contudo: em pouco tempo. O livro nos proporciona uma releitura. Terminamos uma página e lá estamos nós: cristo, preciso ler novamente.

Bem, não sei nada sobre filmes. Mas este: achei confuso. O que é contado: é Cormac.

Reinaldo disse...

saí*

Matheus de Arruda Jesus disse...

Wesley, só enxerguei mesmo alguma qualidade no filme no que diz respeito aos cenários construídos como "habitat" destes personagens. Como disse na minha crítica, é um carnaval de temas (cheios de repetições) dirigido de maneira infantil, existindo, ainda, o fato de o longa não se encaixar em gênero nenhum, por exemplo. Já os diálogos são horríveis; acho que foi erro o próprio Cormac fazer o roteiro, porque penso que ele caiu no puro orgulho de si mesmo de ficar repetindo mil vezes a mesma filosofias e etc.. "A Estrada" e "Onde os Fracos Não Têm Vez" sim, são obras de mestre!!

Não concordo com essa sua crítica, enfim, mas o seu material aqui no blog é de muita qualidade sem dúvida nenhuma, por algumas postagens que já li por aqui. Valeeu. Abraço.