terça-feira, 17 de setembro de 2013

ANTES DA MEIA-NOITE ('Before Midnight') EUA, 2013. Direção: Richard Linklater.

A seqüência inicial deste filme, assessorada pelo diretor de fotografia Christos Voudoris, é notável por seu poder de síntese: num aeroporto internacional, o escritor Jesse Wallace (Ethan Hawke, bastante envelhecido) despede-se de seu filho adolescente (Seamus Davey-Fitzpatrick), prestes a embarcar num vôo de volta à cidade de Chicago, onde vive. É visível a vontade do pai de acompanhar o crescimento e o bem-estar do filho, que, ao perceber esta preocupação, adianta-se em confessar que as seis semanas que passara com ele e sua nova família na Grécia corresponderam ao melhor verão de sua vida. A câmera focaliza os pés dos interlocutores enquanto eles caminham e conversam. Depois de abraçar o filho repetidas vezes, Jesse e ele se despedem, uma música tenra irrompe na banda sonora e, ao sair do aeroporto, um plano móvel continuado permite que percebamos Celine (Julie Delpy) à distância, conversando em francês com alguém ao telefone, e, ao entrar no carro, um movimento brusco focaliza as filhas gêmeas do casal dormindo no banco de trás. Os créditos de abertura surgem e uma nova seqüência começa, esta mais reconhecível em relação ao estilo do diretor, em que a câmera permanece fixa na parte da frente do automóvel, enquanto Celine e Jesse conversam sobre a vida e o casamento e imagens de ruínas na paisagem circundante entremeiam seus diálogos.

O que se percebe imediatamente através do cotejo entre essas duas seqüências é que: 1 – a trilha musical de Graham Reynolds estabelece uma tonalidade sentimentalóide, atrelada às determinações classistas que eram discretas nos filmes anteriores da trilogia, mas incontornáveis na assunção de um cotidiano marital; 2 – o diretor está afobado para concatenar os eventos tramáticos e, ainda assim, manter o clima de nostalgia pelo presente que predominava nos encontros fortuitos do casal; e 3 – o tom dialogístico, instaurado por uma minuciosa colaboração entre os dois atores centrais e o diretor, ainda estava titubeante, em busca de um instante (ou situação) focal que possa ser dramaturgicamente estendida.

 Essas três percepções exordiais, arriscadas em sua forçação esquemática, perigam dirimir o chamariz de que o filme goza em seu anúncio de que fora realizado exatamente nove anos após “Antes do Pôr-do-Sol” (2004), por sua vez realizado nove anos após “Antes do Amanhecer” (1995). Porém, se nos dois primeiros capítulos da trilogia os questionamentos existenciais do relacionamento eram justificados pela fugacidade do encontro, a ostensiva crise de insatisfação cotidiana que permeia o contexto deste filme mais recente intimida o espectador por causa da insistente emulação de transitoriedade nas percepções conjuntas de Celine e Jesse, que parecem viajar o tempo inteiro, de modo que as lembranças que compartilham (e sobre as quais se questionam mutuamente) antecipam o recurso apelativo de ‘continuum espaço-temporal’ que permitirá a reconciliação do casal numa cena-chave posterior.

Ou seja, apesar de não ser estilisticamente tão delimitado quanto os filmes antecedentes, “Antes da Meia-Noite” é brilhantemente indicial, sendo assaz evidente – até mesmo por vias involuntárias – o que deseja transmitir, mas que só é evidenciado na longa e genial seqüência da discussão no hotel, rigorosamente conectada àquilo que os fãs dos personagens desejavam presenciar, não obstante a inversão sentimental em relação à perspectiva anterior, pois, agora, os personagens sobretudo brigam: Jesse hipertrofia as suas características de norte-americano desleixado enquanto Celine subsume-se aos cacoetes contraditórios da neurastenia feminista (entendida enquanto pecha autodeclarada e não enquanto organização discursiva). Em seu terço final, por dedução, este filme é magistralmente coadunado às produções prévias, estabelecendo-se como mais uma realização meritória na vasta e desigual filmografia de seu diretor.

Responsável tanto por filmes que se esforçam para ostentar uma verve alternativa [vide “SubUrbia” (1996), “Waking Life” (2001, em que os protagonistas deste filme aparecem brevemente em versões animadas) e “Nação Fast Food – Uma Rede de Corrupção” (2006)] quanto por obras de apelo comercial inquestionado [“Newton Boys – Irmãos Fora-da-Lei” (1998), “Escola de Rock” (2003) e “Eu e Orson Welles” (2008)], Richard Linklater não possui traços que o identifiquem autoralmente: a desenvoltura de seus sutis movimentos de câmera, a predominância dos diálogos em relação às ações e a temática das preocupações juvenis com o envelhecimento e a inserção capitalista, numa contextualização impregnada de filosofemas, são algumas de suas marcas registradas, mas não constantes em todas as suas obras. Comparar “Jovens, Loucos e Rebeldes” (1993) e “O Homem Duplo” (2006), por exemplo, é um exercício que permite a rápida constatação de suas limitações directivas, compensadas pelo entrosamento de seus atores, algo que, infelizmente, não funciona muito bem na primeira metade de “Antes da Meia-Noite”: os diversos momentos em que Jesse e Celine são mostrados interagindo com típicos representantes da classe média helênica contemporânea falham por causa da pretensa fluidez interativa.

Os lapsos de intelectualidade espontânea (vide o modo como um escritor mais velho descreve as suas influências estilísticas ou o comportamento de uma jovem atriz sentada à mesa) e as confissões românticas provenientes tanto de uma viúva sorridente quanto de um rapazola abobado (vivido pelo formoso Yiannis Papadopoulos, só para constar dos autos) intentam situar o casal de viajantes numa conjuntura de espontaneidade relacional deveras similar àquela em que encontramos os personagens nos filmes antecessores. Porém, somente após a caminhada até o quarto num hotel de luxo que fora pago por seus amigos gregos é que Jesse e Celine irão enxergar (e, por conseguiste, mostrar) a si mesmos como realmente são: receptáculos humanos de emoções e conhecimentos invulgares que são tolhidos pelas convenções e comparações precipitadas do dia-a-dia, clamando por instantes de expressividade confessional mútua em meio aos deslocamentos flexíveis a que se habituaram...

 Se, neste filme, a interpretação displicente de Ethan Hawke rende uma excelente caracterização masculina arquetípica, a deslumbrante Julie Delpy estranhamente se deixa converter num insuportável estereótipo de mulher enfastiada, incorrendo em ressentimentos e laivos de ciúme que só contribuem para desnudar a atmosfera de deslumbramento amoroso idealizado de que o casal gozava até então. Mas, contrariamente ao que poderia parecer, isto não é ruim: a absoluta sinceridade na composição dos personagens nos diversos segmentos da discussão matrimonial a que se submetem permite que reconheçamos a supremacia qualitativa do roteiro, que atualiza muito bem os anseios afetivos dos personagens (que metonimizam também os da platéia), fixando-os em suas condições de classe e diferenças profissionais, mas sem abandonar a graciosidade inerente aos contextos em que eles se conheceram e se reencontraram.

Na derradeira cena, tal qual vinham oferecendo indícios desde a primeira aparição, no filme de 1995, Jesse e Celine se reconciliam a partir da recorrência interpelativa de outras personalidades: ele, como um homem do futuro que conhece as reações íntimas e antecipadas de sua parceira; ela, como uma beldade estulta que se deslumbra pela inteligência pragmática dele. Um belo fecho para uma trilogia que se assume como cíclica, afinal!

 Wesley Pereira de Castro.

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