domingo, 2 de dezembro de 2012

A ESTÉTICA DA CRUELDADE EM CLÁUDIO ASSIS: POR UMA POSTURA ADULTA NO CINEMA BRASILEIRO!

Associado à “estética da crueldade” por causa do modo desafiador e mordaz com que filma Pernambuco, seu Estado-natal – a ponto de ser considerado ‘persona non grata’ por alguns representantes da classe média do mesmo, que não compreendem os seus radicais intentos artísticos – Cláudio Assis erigiu uma das carreiras mais impressionantes do cinema brasileiro nas últimas décadas. Se a palavra “crueldade”, quando associada ao estilo deste cineasta autoral, parece secundária em relação ao seu filme mais recente, considerado “utópico” por alguns, isto se deve a um desentendimento crasso da redefinição que lhe conferiu o crítico e cineasta François Truffaut quando editou alguns textos de seu mentor André Bazin (1918-1958) sobre o título “O Cinema da Crueldade”.

Para além do sexteto de cineastas ancorado sobre este epíteto (Erich Von Stroheim, Carl Theodor Dreyer, Preston Sturges, Luis Buñuel, Alfred Hitchcock e Akira Kurosawa) estar embasado num contexto deveras particular, o da redefinição da cinefilia francesa pós-II Guerra Mundial, uma declaração de seu autor acerca da exigência de um cinema mais adulto estabelece o devido contraponto com a vinculação hodierna de Cláudio Assis: “que não venham dizer que há gosto para tudo, no ponto em que estamos, muito abaixo do gosto. A verdade é outra, é que a crise do cinema é muito menos de ordem estética que de ordem intelectual. Aquilo de que a produção basicamente sofre é de burrice e uma burrice tão evidente que as querelas sobre esteticismos ficam relegadas ao segundo plano”. É uma citação longa mas percuciente, pois, ainda que proferida em 1943, num contexto artístico bastante diverso do atual, aplica-se muitíssimo bem às soluções que o genial Cláudio Assis oferece em relação à crise estrutural e conteudística do cinema brasileiro.

Tendo realizado apenas três longas-metragens, além de alguns curtas-metragens [sendo um deles, “Texas Hotel” (1999), bastante conhecido pelo modo como adiantou os embates sociais e personalísticos dos seus filmes posteriores], Cláudio Assis é tachado de bêbado alucinado por seus detratores e seus filmes não raro enfrentam problemas com uma censura inassumida como tal por causa de incômodos deslocados acerca do excesso de palavrões em seus roteiros ou do sobejo de nudez em suas filmagens. Uma verificação rasteira nos filmes deixa facilmente entrever o quanto são infundadas as alegações demeritórias contra este cineasta: a exacerbação do naturalismo em seus filmes tem por função denunciar as mazelas infligidas pelo tardo-capitalismo contra as populações ditas subdesenvolvidas, às quais restam estrebuchar ou entregar-se aos instintos animalescos básicos, sendo a segunda opção muitíssimo mais coerente em relação aos afãs dos personagens assisianos.

Da assunção de que “o ser humano é só estômago e sexo” em “Amarelo Manga” (2002) à elaboração melancólica de “Baixio das Bestas” (2006), em que as opressões de classe são literalmente convertidas em estupros, Cláudio Assis demonstrou uma evolução técnica tão elogiável quanto urgente, que desemboca na opção contra-hegemônica de sobrevivência e enfrentamento que emerge em “Febre do Rato” (2011), um filme muito mais complexo em sua demonstração de que “a anarquia não deve se tornar dogma”.

 Dentre os aspectos comuns aos três filmes, destacam-se a presença de Matheus Nachtergaele no elenco, a deslumbrante direção fotográfica de Walter Carvalho (com matizes diversos em cada uma das obras) e a constância do anticonformismo, minuciosamente fundamentado e transmutado em imagens e sons, nos roteiros de Hilton Lacerda. Em “Amarelo Manga”, o ator referido interpreta um homossexual obcecado por um açougueiro e as tonalidades fotográficas acentuam a cor mencionada no título do filme, estando o roteiro a serviço da demonstração dos conflitos oriundos da exacerbação famélica (em sentido existencial, inclusive), tornando concomitantes a adesão de uma evangélica ao sexo anal fetichista, a necrofilia, o transe de um mulherengo arrependido no clímax ruidoso de uma igreja, o vício em aerossóis vaginais, o assassinato legitimado de animais, e até mesmo a leitura oportuna de Friedrich Nietzsche pelo dono de um bode! Em “Baixio das Bestas”, Matheus Nachtergaele vive o influenciador de um rapaz mimado e perverso de classe média, que confunde o desbunde exalado num filme clássico de Cláudio Cunha [“Oh! Rebuceteio” (1984)] com a capacidade de empalar genitalmente uma prostituta crédula, estando a fotografia de Walter Carvalho marcada por tonalidades mais lúgubres, tanto quanto o são o prólogo poético do filme e o desfecho do mesmo, em que uma encenação de macaratu exalta a violência como potencial mecanismo de luta contra a miséria e a exploração do homem pelo homem. Em “Febre do Rato”, a sutileza contida da interpretação do ator e a deslumbrante captação em preto-e-branco do fotógrafo exigem um parágrafo adicional para coadunar este filme à tarefa anunciada no título desta resenha.

 Centrado na figura do poeta Zizo (interpretado apaixonadamente por Irandhir Santos), o que configura uma importante – e problemática – mudança de tom em relação às produções anteriores, muito mais explícitas em sua estrutura de filme-painel, “Febre do Rato” é absolutamente original em sua postura de dissenso em relação ao poder vigente, abdicando das cenas-choque dos filmes anteriores em prol da reiteração imagética do discurso de seu protagonista, que propõe, contra a opressão e a desunião dos ricos, “a alegria e a camaradagem; o sexo e a anarquia”. Nesse sentido, o filme erige aquilo que ele tem de mais defeituoso e, simultaneamente, encantador: o apelo à poesia.

 Se, por um lado, parecem inconvincentes o modo como os habitantes da comunidade onde vive Zizo aderem à profusão erudita e pornográfica de seus versos e a falta de explicações para a subsistência material do poeta (visto que ele aparece diversas vezes consumindo muitas garrafas de cerveja em bares, além de possuir uma máquina moderna de fotocópias, a qual ele utiliza sem qualquer preocupação evidente com o esvaziamento de tinta), por outro, os personagens que o rodeiam são agraciados por manifestações epifânicas encontradas na realidade e demonstradas através de uma moça que se movimenta nua num balanço ou na diegetização da trilha sonora original de Jorge du Peixe, conforme executada pelo laudatório pianista Vitor Araújo (que aparece despido numa das mais belas seqüência do filme, quando a mesma moça do balanço brinca com os testículos de seu trio de amantes, como se fossem ovos de Páscoa).

 A autenticidade do travestismo de Tânia Granussi, a nudez quase permanente e o carisma iridescente de Mariana Nunes, a coadjuvação à altura do também bastante desnudado Juliano Cazarré, as cenas de sexo gerontofílico co-protagonizadas por Maria Gladys e Conceição Camarotti, o resgate actancial de Ângela Leal e a indefinição conscienciosa de Nanda Costa são alguns dos aspectos magnos do elenco, que explodem em dois momentos célebres do filme: o protesto dos excluídos no desfile de sete de setembro e o desfecho que rejeita a nostalgia paralisante, não obstante a saudade que todos sentem do desaparecido Zizo – que, por uma ironia deveras sagaz, talvez tenha morrido em decorrência de leptospirose, depois que é atirado pela Polícia num rio poluído.

Analisando-se adequadamente o filme, não é de se estranhar que estejam ausentes as conseqüências homicidas do narcotráfico ou a comiseração diante da pobreza, características recorrentes na maioria dos filmes recentes que abordam o cotidiano das pessoas com menor poder aquisitivo no Brasil: o que Cláudio Assis deseja mostrar (e exaltar) em seu filme deve ser lido nas entrelinhas, nas paredes, nos muros, nos panfletos subversivos e no arcabouço cultural dos espectadores que não se deixam hipnotizar pelo maniqueísmo oportunista que pulula nas representações cinematográficas vendáveis das contradições políticas da atualidade!


 Wesley Pereira de Castro.

3 comentários:

Jadson Teles disse...

Gostei, mas parece pouco apaixonado..... e acho que não entendi a tese defendida por voce, em tentar filair ele as teses bazinianas de um cinema de crueldade, mas emfim... muito bom texto, depois converso contigo sobre o seu texto

Pseudokane3 disse...

Por partes, então:

1 - a aparente "falta de paixão" é decorrente justamente do excesso de paixão; estou tão imbuído de desejo pelo filme que não consegui me expressar muito bem: um desejo danado de revê-lo, de senti-lo, mesmo mantendo a impressão de que, em nota, ele não ultrapassa o 7,4 que lhe atribuí...

2 - a conjunção ao "cinema da crueldade" baziniano foi um gancho com um título do curso de Romero e refere-se menos ao sexteto de cineastas mencionado que ao depoimento muito coerente com o que podemos acrescentar ao panorama brasileiro hodierno, tanto que incluirei algumas das passagens aqui escritas na minha dissertação (hehehehe);

3 - Tuas opiniões são muitíssimo importantes para mim, Jadson. Logo, sigo na espera. De resto, obrigado pela paciência! (WPC>)

Jadson Teles disse...

Não sei, acho que é preciso fazer distorções interpretativas nas categorias discursivas e nas teorias estrangeiras para cabê-las no nosso contexto e outros "periféricos". talvez possamos fazer alguma coisa parecida acho que o " Febre do rato" está me motivando a pensar além dele mesmo, para poder voltar a ele, pena que logo agora, que estou esgotado mentalmente, mas querido Wesley acho que é algo de urgente nesse sentido, e sei muito bem que distorções é com você mesmo... xerinho erotico

Jadson.