sexta-feira, 12 de abril de 2024

DOIS É DEMAIS EM ORLANDO (2024, de Rodrigo Van Der Put)


 

Após demonstrar os seus incríveis talentos dramáticos, num desempenho adulto e mui aplaudível, na série “Os Outros”, Eduardo Sterblitch retorna aos personagens infantilizados que o consagraram, ainda que saibamos que seu estilo cômico é demarcado por nuanças sardônicas, conforme percebemos em “Os Penetras” (2012) e “Chacrinha: o Velho Guerreiro” (2018), ambos de Andrucha Waddington. Aqui, entretanto, ele não tem muito a fazer como o protagonista João, exceto exagerar em caretas e ‘gags’ que atrapalham o desenvolvimento de uma trama automática e pouquíssimo interessante.



Insistindo que “um é bom, dois é demais”, João é traumatizado por uma experiência de infância, quando o seu pai, já doente, o desafia a andar sozinho numa montanha-russa. Pouco tempo depois, seu pai morre e João cresce como um ‘nerd’ assexuado, obcecado pelas franquias “Jurassic Park” e “Transformers”. Trabalhando como editor num ‘vlog’ de confeitaria, João está prestes a entrar em férias e viajar sozinho para um parque aquático em Orlando – confirmando o seu lema pessoal e justificando o título do filme -, mas uma série de acasos faz com que ele seja convencido a cuidar do filho de sua patroa por algumas horas. Suspeitando que seu emprego está em jogo, pois a empresa para a qual trabalha foi vendida para um grupo de empresários estadunidenses, João aceita a empreitada, de maneira oportunista: ele crê que, ficando ao lado do menino, poderá descobrir o que realmente aconteceu à empresa…



Carlos Alberto (Pedro Busrgarelli), o filho da patroa, é um garoto de onze anos de idade, que tem medo de quase tudo. Com receio de desapontar seu pai esportista, Ricardo (Anderson Di Rizzi), que vive nos EUA e com quem ele encontrará na viagem, o menino finge ser um aventureiro, e a companhia forçada de João ser-lhe-á um estímulo involuntário para os enfrentamentos. Compartilhando o mesmo quarto de hotel, João e Carlos Alberto perceberão ter muito em comum, mesmo que as diferenças sejam enfatizadas, por motivos humorísticos. Exemplo: o garoto é vegetariano, e, quando João chega perto dele com dois cachorros-quentes, ele recusa prontamente, ao que o outro diz “não comprei para ti, os dois são para mim mesmo”!



Tal qual acontece nesse tipo de trama, os desencontros familiares e as mentiras acumuladas dos personagens permitirão que eles sejam moralmente redimidos, ao descobrirem as benesses da verdadeira amizade. João e Carlos Alberto se divertirão bastante em Orlando e, ainda que tenham se aproximado de maneira forçada, constatarão que têm muito a aprender um com o outro. O grande problema deste clichê, em âmbito enredístico: muitas vezes, parece que o roteiro do filme foi escrito como pretexto para filmar os atores e a equipe técnica distraindo-se no parque de diversões onde acontece as ações.



Entulhado de situações explicitamente publicitárias, o filme é uma longa peça de ‘marketing’, destinado a divulgar as opções de lazer numa área associada aos estúdios da produtora Universal, além de menções recorrentes à rede de canais de TV por assinatura Telecine. Há um diálogo engraçado, em que João e Carlos Alberto citam vários títulos de filmes disponíveis no catálogo desta rede de canais (que é também um serviço de ‘streaming’), a fim de demonstrarem que estão incomodados por estarem confinados num mesmo quarto. Mas logo estarão em sintonia, quando percebem na figura do dentista Anderson Cabello (Daniel Furlan) o alvo ideal para as suas travessuras mútuas. Enquanto aval, o fato de este hóspede, que evita açúcar e sofre de Transtorno Obsessivo-Compulsivo, ser insuportável!



Da mesma maneira que o protagonista, o antagonista idiotizado recorre às caretas e ao histrionismo, numa composição repleta de caricaturas vilanazes dos filmes infantis. O garoto é bastante simpático e espontâneo, a despeito dos caprichos classistas de seu personagem, mas seus companheiros de cena investem na exacerbação de estereótipos, a ponto de, em comparação com os demais, ele ser tachado de adulto, ainda mais que sua mãe Clara (Luana Martau), comumente ocupada com as tarefas de trabalho. A comediante Polly Marinho tem boa presença em cena, como Maristela, companheira de trabalho de João, mas suas breves participações são desperdiçadas numa subtrama pouco convincente sobre ameaça desempregatícia, que dá origem ao grupo de WhatsApp (“Mala Extraviada”) que ofenderá Carlos Alberto. Resta apreciar, se possível, as diversas seqüências em tobogãs, piscinas e atrações robóticas do parque supramencionado.



Em mais de um momento, Carlos Alberto pede a João que largue o telefone celular e curta as férias, mas o filme desobedece a este conselho: sua linguagem tenta emular o frenesi dos conteúdos virtuais, com destaque para a montagem à la Tik Tok e afins. Por mais desleal que seja no rol de mentiras que conta para o seu filho, Ricardo é mostrado como pai ideal, que só deseja o melhor para ele, em viés material. O diretor Rodrigo van Der Put, proveniente dos médias-metragens escritos e protagonizados pelos membros do grupo humorístico “Porta dos Fundos”, parece cônscio da vacuidade de suas imagens, a ponto de sequer enquadrar o que é exibido no momento em que os personagens assistem ao programa de TV que permite a ascensão profissional de Clara e João. Nos créditos finais, fotografias da equipe em Orlando são compartilhadas. Ao menos, eles parecem ter se divertido!



Wesley Pereira de Castro.

SEUS OSSOS E SEUS OLHOS (2019, de Caetano Gotardo)


 

O mergulho poético é primordial nos trabalhos dirigidos e roteirizados pelo capixaba radicado em São Paulo Caetano Gotardo. Seja nas bifurcações narrativas e cancionais de sua obra-prima “O que Se Move” (2013), seja na montagem de seu longa-metragem mais ostensivamente experimental, “Você nos Queima” (2021), passando por seus curtas-metragens afetivos e no ótimo exercício de gênero que atende pelo nome de “Todos os Mortos” (2020, co-dirigido por Marco Dutra). Em “Seus Ossos e Seus Olhos” (2019), ele dialoga fora de campo com alguns dos principais contistas cinematográficos, sendo a primeira fase da carreira de Hong Sang-Soo uma comparação evidente. Com a diferença de que, em vez de comida, Caetano Gotardo focaliza os movimentos (retrações e expansões) dos corpos.



O roteiro aborda o contorcionismo diuturno das pessoas em variegados âmbitos, desde o desconforto do protagonista João (interpretado pelo próprio diretor), quando tenta se aconchegar na residência de sua amiga Irene (Malu Galli), até as coreografias dos dançarinos que ele observa na rua, a rememoração nostálgica de um homem que se deita tortamente e a crise performática de uma espécie de Síndrome de Tourette, a que João se submete depois que conversa com seu namorado. É quando ouvimos uma frase que fôra proferida no início do filme: “eu gostaria de ser violento”. São inúmeros, portanto, os elementos dramatúrgicos que justificam a relação entre os órgãos do corpo humano citados no título do filme.



De um lado, os ossos que permitem que os personagens se enrosquem nas preliminares sexuais; do outro, os olhos que metonimizam o elã do realizador acerca da exploração máxima das possibilidades dos sentidos, através de estórias que ressurgem dentro de histórias, que são narrativas orais que transitam entre a memória, a imaginação e a própria realidade. Numa determinada seqüência, Álvaro (Vinicius Meloni), o namorado ator de João, ouve o relato de uma jovem que desmaia por mais de duas horas numa aula, surgido enquanto ensaio interpretativo. Mais à frente, essa mesma situação é narrada como se tivesse sido testemunhada, ao vivo, pelo próprio Álvaro.



Tal como costumava acontecer nos filmes sangsoonianos, eventos e diálogos são repetidos com pequenas modificações, ao longo da projeção, como os diversos encontros com pedintes que João narra, e que o faz ter medo, eventualmente, de andar pelas ruas paulistanas. Num deles, um garoto fica chateado quando recebe apenas dois Reais de esmola, já que esperava (e alegava precisar de) vinte e cinco; noutro, um adolescente que pede que João lhe compre fraldas instiga-lhe a suspeita de que ele trocará estes produtos por ‘crack’. Perto do desfecho, João é perseguido por um transeunte, que queria apenas que ele lhe pagasse um lanche. As histórias transmutam-se, cada vez que aparecem na tela ou através da voz de algum dos falantes…



Caracterizado por planos extensos, geralmente sem cortes e conduzidos pelos depoimentos dos personagens, este filme destaca-se pela escolha acertada de intérpretes, que parecem aproveitar causos biográficos como complementos de seus monólogos expressivos. Num dos momentos mais insignes, Irene descreve o instante em que, ao observar o seu namorado peruano dormindo, pensa: “desde já, isso é memória”. Tal impressão é discursivamente aproveitada ao longo de todo o entrecho, seja quando um amante casual de João, Matias (Carlos Escher), esforça-se para lembrar o nome composto de um garoto por quem se apaixonara, aos doze anos de idade – e a quem dedicara uma poesia de Florbela Espanca [1894-1930], seja quando o mesmo Matias, repetindo diálogos que foram inicialmente proferidos por Álvaro, questiona João acerca de algo que ele descreve sem ter testemunhado. Diz ele que isso corresponde a “uma imagem que você não viu”, ao que João responde categoricamente “eu vi”. Não apenas o fez como compartilhou sinestesicamente com o público.



Na trilha musical, trechos da suíte composta para “O que Se Move” são executadas, em determinado momento. Caetano Gotardo tem plena consciência da maneira sensível e inteligente com que todas as suas obras concatenam-se autoralmente, podendo-se encontrar recorrências estilísticas em trabalhos anteriores e posteriores, como a afetação sentida a partir de interpelações urbanas – ponto de partida sinóptico-titular de “O Menino Japonês” (2009) – seja na importância concedida aos encontros fortuitos no metrô, que serão fragmentados e radicalizados em “Você Nos Queima”. Diante de uma pintura, num museu, Irene e João tergiversam acerca do que a mulher retratada sente ao contemplar uma carta, que pode ser também uma fotografia. Faz-se menção direta a um questionamento do documentário ensaístico “Sem Sol” (1983, de Chris Marker): “como lembramos da sede que sentimos?”. Irene altera significativamente o verbo: “e como a esquecemos?”



Propenso a múltiplas decifrações, à guisa de um palimpsesto metalingüístico, em que o próprio João é mostrado editando um ‘flashback’ convertido em filmagem, “Seus Ossos e Seus Olhos” permite também uma extraordinária reflexão política, quando uma das atrizes do grupo teatral do qual Álvaro participa faz uma necessária digressão sobre as similaridades criminosas entre o nazifascismo, a ditadura militar e o golpe parlamentar-midiático que deflagrou o ‘impeachment’ da ex-presidenta Dilma Rousseff, em 2016. Sempre fascinante, como a voz aveludada de seu realizador e protagonista, este filme nos concede quase duas horas de reencontro conosco mesmos, a partir da dramatização de correspondências associadas a uma nova pedagogia do cotidiano: convém não apenas ver, ouvir e movimentar-se, mas sobretudo sentir!




Wesley Pereira de Castro.

UMA FAMÍLIA FELIZ (2023, de José Eduardo Belmonte)


Demonstrando-se um diretor tão prolífico quanto versátil, o paulista radicado em Brasília José Eduardo Belmonte chamou a atenção da crítica especializada quando lançou o corajoso “A Concepção” (2005), premiado em alguns festivais e mui corajoso em seu discurso anárquico. Se ele não obteve o mesmo sucesso com o pretensioso e tedioso “Meu Mundo em Perigo” (2007), acertou novamente em cheio no ótimo “Se Nada Mais Der Certo” (2008). Daí para a frente, revezou-se entre produções esquecíveis [“Billi Pig” (2011)], trabalhos pessoais e irregulares [“O Gorila” (2012) e “O Pastor e o Guerrilheiro” (2022), entre eles], mergulhos eficientes no cinema de gênero [“Alemão” (2014) e “Entre Idas e Vindas” (2016)] e diversas produções televisivas. É alguém cujo currículo merece ser analisado, portanto.


Em “Uma Família Feliz” (2023) – adaptado de um argumento que deu origem ao romance homônimo do carioca Raphael Montes, também roteirista do filme –, o diretor amalgama características de vários de seus filmes, sem que possamos tachá-lo efetivamente de uma obra autoral: ele volta a escalar Grazi Massafera como protagonista, insere alguns elementos discursivos de caráter pessoal (vide a revelação imagética na metade dos créditos finais, quando uma bandeira nacional deixa patente a orientação política do realizador) e manipula com habilidade as convenções do gênero suspense. Em muitos sentidos, este filme é uma eficiente adaptação brasileira de títulos noventistas como “Dormindo com o Inimigo” (1991, de Joseph Ruben) e “A Mão que Balança o Berço” (1992, de Curtis Hanson). Por isso mesmo, pode perturbar alguns espectadores.


O título do filme deixa evidente a desconfiança do realizador quanto à instituição familiar, o que já foi demonstrado em mais de um de seus filmes. Por detrás da perfeição daquele casal bem-sucedido, escondem-se segredos devastadores, que serão apresentados através de reviravoltas impressionantes. Que, por sua vez, perdem um pouco do impacto por conta da opção do diretor em iniciar a sua obra com o cllímax fatalista: na sequência inicial, a personagem Eva enterra uma de suas filhas gêmeas e provoca um acidente com a outra, num carro em altíssima velocidade. O porquê? É o que descobriremos após o unitário crédito titular.


Eva é casada com Vicente (Reynaldo Gianecchini), um advogado que anseia por uma promoção em seu trabalho, a fim de poder proporcionar mais luxo e conforto à sua esposa e às suas filhas. A família está prestes a aumentar, em verdade: Eva está grávida e, em pouco tempo, um garotinho será trazido para a casa luxuosa onde ela vive, na qual possui um ateliê de bonecos assemelhados a bebês humanos. O choro contínuo do recém-nascido incomodará a mulher, que não consegue dedicar-se ao seu ofício, em razão de estar sobrecarregada de trabalhos domésticos. Para piorar, Vicente descobre hematomas em uma de suas filhas...


Se, por causa do que é mostrado na seqüência de abertura, a condução narrativa faz com que o espectador pense que Eva está atormentada por crises de esquizofrenia, o que é reiterado pelo desenho de som marcado por uma constante e perturbadora cacofonia, na segunda metade da trama, acontece o inverso: fica-se ao lado de Eva, que desconfia que Vicente está abusando sexualmente das garotas. Quem estaria realmente machucando os filhos do casal? É algo que descobriremos apenas próximo ao desfecho, que permanece em aberto, exceto por um acréscimo nos créditos de encerramento. É quando aparece a bandeira supracitada, e o filme assume o seu franco aspecto antibolsonarista, associado à descrição de um modelo idealizado de família, composta pelos autodeclarados “cidadãos de bem”. O filme, inclusive, foi gravado em Curitiba, reduto de muitos partidários da extrema-direita brasileira.


As interpretações dos dois atores principais, deveras criticados em papéis anteriores, não são memoráveis, mas também não atrapalham a verossimilhança daquela conjuntura aburguesada: como sói acontecer entre pessoas que valorizam excessivamente as aparências, eles fingem ter um casamento ideal, até que eclode uma situação de “cancelamento”, e Eva passa a ser rejeitada pelos vizinhos e por aquelas que, até então, considerava como suas amigas. Por extensão, ela surta psiquiatricamente, o que faz com que suspeitemos, mais uma vez, que ela é a legítima culpada pelo que acontece às suas filhas. Até que, em determinado momento, o roteiro passa a defendê-la. Quando já é tarde demais, infelizmente!


Em sua adesão às fórmulas e reviravoltas de suspense, o filme merece ser divulgado e recomendado. Comete alguns deslizes em detalhes secundários (a cronologia dos dias registrados através de câmeras de vigilância, por exemplo, e a concordância textual numa pesquisa jornalística efetuada pela protagonista), mas isso não subestima por completo a inteligência e a sensibilidade de quem conferir o filme nos cinemas. É uma metonímia interessante dos valores destorcidos de membros privilegiados da elite aquisitiva do país. E mais uma confirmação de que, entre erros e acertos, José Eduardo Belmonte constrói uma filmografia tão numerosa quanto digna de análise, enquanto artesão capacitado do cinema brasileiro contemporâneo. Isso, definitivamente, não é pouco!



Wesley Pereira de Castro. 

 

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

NADA SERÁ COMO ANTES - A MÚSICA DO CLUBE DA ESQUINA (2023, de Ana Rieper)

Apesar do subtítulo descritivo, este filme não opta pelo percurso historiográfico nem será idealmente apreciado por quem não conhece a fundo o disco em pauta: a diretora realiza quase um 'making-of' tardio, um material que poderia muito bem ser inserido nos extras do DVD de um efusivo reencontro, no palco, entre os músicos entrevistados. A tônica depoimental é tão improvisada quanto eram as composições do grupo, em relatos que enfatizam o quão importante é a amizade na criação artística: "o Clube da Esquina só existiu por causa do movimento estudantil e do cinema", enfatiza um deles, inclusive.


No início, Lô Borges agradece ao instante em que sua mãe pediu para que ele comprasse pão e leite e, ao descer a escada do prédio em que morava, escutou a voz egrégia do jovem Milton Nascimento: ficou compreensivamente fascinado por ele, à primeira audição. De repente, o músico comenta que, em sua época, "a infância era muito mais inocente" e que "demorou para descobrir que Papai Noel não existia". Aos dez anos de idade, ele encontrou Beto Guedes na rua, e tentou trocar algumas moedas estrangeiras pelo patinete que ele conduzia. E, assim, ele vai mudando de assunto, demonstrando que é tudo muito circunstancial no documentário, o que confirma a ambientação afetiva identificada pelos entrevistados. Porém, isso deixa o espectador frustrado por não saber mais sobre o processo de criação do álbum: para a diretora, o que importa é sentir, através de lembranças compartilhadas!


Lançado em março de 1972, o álbum "Clube da Esquina" é sobremaneira elogiado pelos críticos musicais, sendo considerado um dos melhores e mais importantes discos brasileiros. Recentemente, a famosa capa - que flagra dois garotos, um branco e um negro, sentados no chão de uma estrada de terra - foi alvo de um processo judicial, visto que os dois meninos, já crescidos, exigiram compensação monetária, por não saberem que foram fotografados e expostos comercialmente por tanto tempo. Esta informação não aparece no filme, e o próprio processo de gravação do álbum é comentado de maneira esparsa. À realizadora, conhecida por ter se enveredado pela influência da música brega, em "Vou Rifar Meu Coração (2011 - crítica aqui), interessa muito mais registrar a emoção dos cantores, já idosos, redescobrindo acordes, lembrando causos de quando eles passavam as noites juntos, conversando e cantando sobre os mais variados temas, na esquina de uma rua do bairro onde residiam... 


Sendo ostensivamente modesto na adoção da linguagem documental e evitando estratagemas que poderiam encarecer o orçamento do filme (executar as canções de The Beatles que os amigos músicos tanto mencionam, por exemplo), "Nada Será Como Antes - A Música do Clube da Esquina" cumpre o que está embutido na primeira sentença titular, em suas intenções nostálgicas, mas revela-se conteudisticamente parco na aplicação da segunda. Conhecemos as influências (rock progressivo, jazz, pontos de candomblé) daqueles outrora rapazes, descobrimos que a musicalidade mineira é influenciada pela geografia montanhosa do Estado e constatamos que a inteligência e a sensibilidade dos responsáveis por uma obra-prima do cancioneiro nacional permanecem resguardadas. Todavia, isso não é suficiente para explicar a excelência e a complexidade da feitura de um álbum musical. Enquanto longa-metragem documental, este filme é tão evasivo quanto uma conversa ouvida durante um passeio de trem: instaura a curiosidade e nos atiça, carinhosamente, mas logo se perde em meio a outros chamarizes audiovisuais. Fica a recomendação para ouvirmos novamente o disco, prestando ainda mais atenção à beleza singular de suas letras e acordes: "você ainda pensa e é melhor do que nada"!


Wesley Pereira de Castro. 

sábado, 3 de fevereiro de 2024

POBRES CRIATURAS (2023, de Yorgos Lanthimos)

Em dado momento do filme - mais precisamente no capítulo sobre um cruzeiro marítimo - a protagonista Bella Baxter (intensamente interpretada por Emma Stone) conhece um gigolô chamado Harry (Jerrod Carmichael), que, além de demonstrar a ela que há muita miséria no mundo, tenta demovê-la de ter esperança na humanidade, "seja advinda da religião, do socialismo ou do capitalismo". E, enquanto ele discursa, podemos enxergar nele uma espécie de alter-ego diretor, conhecido por sua misantropia. À primeira vista, esta é uma breve participação, uma fala solta. Mas a onipresença egóica do realizador é manifesta ao longo de toda a projeção, através de uma perspectiva que simula o fechamento da íris ou uma bisbilhotada pelo buraco de um telescópio: há um personagem cujo apelido é God, mas, no universo lanthimosiano, o único deus é ele próprio! 


Isso não quer dizer que o direcionamento feminista do roteiro seja inócuo: muito pelo contrário, a jornada de amadurecimento de Bella, a partir de suas múltiplas descobertas sexuais, é sobremaneira aplaudível, não obstante terminar num previsível mote vingativo, que faz referência direta ao desfecho de "Monstros" (1932, de Tod Browning). É uma das diversas referências literárias e cinematográficas detectáveis nesta luxuosa produção, que conta com uma fotografia acachapante e ostensivamente artificial de Robbie Ryan , que leva ao extremo a utilização de lentes olhos-de-peixe, mais uma vez corroborando o olhar teológico do realizador, testada anteriormente na colaboração em "A Favorita" (2018). A trilha musical de Jerskin Fendrix é igualmente esplêndida! 


As inspiradas seqüências no prostíbulo parisiense possuem elementos conteudísticos que remetem ao clássico "A Bela da Tarde" (1967, de Luis Buñuel) e ângulos e enquadramentos mui assemelhados a "Laranja Mecânica" (1971, de Stanley Kubrick), o que não deve ser casual, já que todas estas obras possuem como tema comum a adesão defensiva do livre-arbítrio. Neste sentido, é muito complexo, no mais positivo dos sentidos, o desenvolvimento tramático das relações que Bella estabelece com o anatomista que lhe serve de figura paterna, Godwin (vivido por um excelente Willem Defoe), e a companheira de meretrício que torna-se a sua amante e iniciadora explícita no socialismo, Toinette (Suzy Bemba). É magnífica a cena em que as duas, fugindo da perseguição ciumenta do insuportável Duncan (Mark Ruffalo), gritam: "nós somos nossos próprios meios de produção"!


Esta última frase, mui oportuna, faz com que retornemos para um conflito interno no enredo fabular: ainda que Bella Baxter chame a atenção por seu empirismo erótico e que a atriz Emma Stone mereça todos os aplausos e prêmios por sua extraordinária entrega actancial, é a obsessão do realizador pela temática supostamente protetoral do confinamento que se instaura como dominante. O protagonismo é feminino - e repetimos: também feminista -, mas o que efetivamente interessa ao diretor é a confirmação de suas teses sobre a degradação dos caracteres humanos em face da repressão alheia (alegadamente social) sobre a sobrecarga desejosa (biológica e/ou natural) de alguém, o que já pode ser detectado nos filmes que ele rodou antes de "Dente Canino"(2009), que garantiu-lhe projeção internacional. Yorgos Lanthimos é um esteta que desconfia das intenções dos amantes, dos cuidados familiares e da beleza enquanto válvula de escape sensório. Como tal, precisa aderir a certa dose de sadismo (insere a questão ameaçadora da infibulação!), felizmente moderado neste trabalho mais recente, permeado por situações e diálogos cômicos, pelas intervenções de uma figura terna (o assistente Max McCandles, vivido por Ramy Youssef) e por algumas manifestações reflexivas do perdão. Quão luminosas são as aparições de Hanna Schygulla, admitindo que também é adepta da masturbação. Viva! 


Wesley Pereira de Castro. 

sábado, 21 de outubro de 2023

ASSASSINOS DA LUA DAS FLORES (2023, de Martin Scorsese)


Em dado momento das três horas e vinte minutos de duração deste filme, os fãs das aceleradas narrativas scorseseanas tendem a estranhar a maneira comedida com que ele se dedica à linearidade do relato, quiçá obedecendo à estrutura capitular do romance original de David Grann. Diferentemente do que ele acostumou-nos em seus trabalhos mais célebres, aqui, a montagem de sua colaboradora fiel Thelma Schoonmaker evita as estripulias lingüísticas, não obstante servir-se de paralelismos situacionais e de 'flashbacks' explicativos/revisionistas. Até que a derradeira seqüência referenda a genialidade do realizador, no que tange à consciência de que, ao narrar a História de seu país, ele obrigatoriamente dedica-se a uma listagem de assassinatos. O que, porém, não o leva a estimular a descrença nas instituições democráticas, mesmo que fique evidente que isso advém de construtos discursivos embasados na repetição factual com intenções descadaramente ideológicas...  


Ao narrar a comunhão matrimonial oportunista (e ambígua) entre um jovem recém-chegado da I Guerra Mundial (Leonardo DiCaprio) e uma mulher indígena (Lily Gladstone, magnífica) com direito a grandes somas de dinheiro, relacionadas à exploração de petróleo em suas terras nativas, Martin Scorsese - que adaptou o roteiro do filme, junto ao premiado Eric Roth - chama a atenção exatamente para aquilo que a História é: uma narração! Neste sentido, o brilhantismo do desfecho também possui uma carga autocrítica, visto que, somando-se pincipalmente a John Ford [1894-1973], o diretor tem clareza de que contribuiu para uma apreensão deveras específica sobre as condições de estabelecimento da nação estadunidense. Ou seja, ele assume que oferece mitos nacionais ao espectador, malgrado preferir a faceta anti-heróica (ou até mesmo vilanesca) dos mesmos, fazendo com que este novo longa-metragem seja um complemento direto do igualmente magistral "Gangues de Nova York" (2002). 


Fotografado de maneira excelente por Rodrigo Pietro, "Assassinos da Lua das Flores" é musicado de forma inteligente por Robbie Robertson [1943-2023], cujas composições muitas vezes se estendem por longos minutos, reforçando o aspecto conseqüencial das atitudes dos personagens, em cenas distintas. Ainda que a perspectiva dominante seja a do protagonista Ernest Burkhart, em tom objetivo, o filme surpreende ao inserir duas alucinações moribundas da personagem Lizzie Q. (Tantoo Cardinal), em tom subjetivo, antecipando a reviravolta narratológica da seqüência final, uma das mais corajosas já filmadas (e protagonizadas) pelo cineasta, um dos mais talentosos em atividade em Hollywood! 


Em sua décima colaboração actancial com o diretor, Robert De Niro converte o vilão William King Hale num personagem que sintetiza as características hipócritas facilmente encontráveis nos líderes carismáticos de algumas regiões norte-americanas, sendo escancaradas as intenções político-denuncistas do enredo quanto a problemas da atualidade. Porém, o foco tramático é o pedido de desculpas a uma comunidade indígena que foi amplamente dizimada, num projeto malévolo desvendado pelo então recente FBI (Federal Bureau of Investigation), fundado em 1908. Quantos e quantos genocídios locais não receberam a mesma atenção midiática, conforme o diretor faz questão de emular, ao citar a influência da Ku Klux Klan nalguns atos violentos, mencionados pelos personagens. Servindo-se, portanto, de uma estrutura narrativa consolidada, Martin Scorsese obriga-nos a questionar os interesses por detrás da própria ficcionalização - e, assim, no auge de oitenta anos de idade, ele entregou-nos um trabalho de gênio! 


Wesley Pereira de Castro. 

sábado, 30 de setembro de 2023

OTHELO, O GRANDE (2023, de Lucas H. Rossi dos Santos)


É sempre válido que se fale sobre os múltiplos talentos do ator, compositor e humorista mineiro Sebastião Prata [1915-1993], mas este documentário segue um percurso laudatório mui tradicional, com viés quase telejornalístico. Ainda que sejam aproveitados excelentes depoimentos do ator e que a montagem seja primorosa, ao concatenar diversas participações do artista em filmes e programas de TV, a ausência de narração, a falta de identificação imediata dos materiais utilizados e a recusa em exibir outras personalidades falando sobre o biografado tornam o resultado sobremaneira reiterativo. Não sabemos mais sobre este importante brasileiro apenas a sessão, apenas revemos trechos que já foram utilizados em reportagens anteriores sobre ele!


Tendo como mote recorrente a entrevista que o ator concedeu ao programa "Roda Viva", da TV Cultura, em 1987, há importantes menções à discriminação racial que ele enfrentou ao longo de toda a sua vida, além da exposição revoltante de trechos indisfarçadamente racistas de obras das quais ele participou, como o filme no qual alguém se interroga "como uma cabeça tão preta pode ter idéias tão claras?". Porém, as omissões são gritantes, seja no falta de aproveitamento dos comentários de Grande Otelo sobre o Cinema Novo - donde a sua presença em "Os Herdeiros" (1970, de Carlos Diegues) é marcante enquanto enfrentamento -, seja na falta de manifestação sobre os derradeiros trabalhos do ator ou mesmo sobre as condições de seu falecimento. Neste sentido, o filme, em seus propósitos documentais, é decepcionante. 


Voltando ao parágrafo inicial, não obstante este filme apenas requentar cenas de outros veículos, é sempre válido que se fale sobre Grande Otelo, que tenhamos a oportunidade de ouvi-lo comentar sobre os encontros com Orson Welles [1915-1985] ou Werner Herzog, enumerar as características e fatos de suas relações familiares ou recitar a máxima de que "todo ator cômico, nalgum momento, emocionará alguém e todo ator dramático, nalgum instante, conseguirá fazer alguém sorrir". E, tal qual Zezé Motta expande, a partir de alguns versos de Carlos Drummond de Andrade [1902-1987], Sebastião Bernardes de Souza Prata foi um artista completo! 



Wesley Pereira de Castro.